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sexta-feira, 5 de novembro de 2010

Palavras Cruzadas


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Outro dia descobri que um amigo de há muitos anos partilha comigo uma dependência. Isto podia ser um belo começo para um romance gay mas, como saberão, esse tema não faz o meu género, muito pelo contrário.
O que se passa é que, segundo parece, não sou o único intraterrestre que, ao dar consigo num quarto-de-banho, em posição de não recuo e longe de qualquer livro, revista ou jornal, lança mão ao que tiver à dita, nem que seja um rótulo duma embalagem de antipirético. Não é à toa que aquilo que hoje se designa posologia se designava não há tanto tempo como isso literatura médica. Não é assim necessário recorrer a Fernando Namora, Miguel Torga ou Lobo Antunes para alimentar o espírito quando o corpo tem disposição oposta. E quando não se divisa medicamentos, e não há outro remédio, recorre-se a rótulos de latas de spray da barba. É claro que mesmo esses já viram melhores dias. Assiste-se hoje, como em toda a restante literatura, a uma degradação da qualidade do texto, com uma mistura inaceitável entre português, inglês, latim e química. E deparamo-nos muitas vezes com erros ortográficos óbvios, como fragância ou recepiente. Já não falando no texto em alemão, que é um chorrilho pegado, onde é vulgaríssimo encontrar sonnenbestralung em vez de sonnenbestrahlung ou entzundliche em lugar de entzündliche. Voltaremos ao trema.
Há portanto uma diferença entre ter de ler e ter que ler. [Curiosamente, é a primeira vez que encontro algum sentido naquela regra, que me parecia abstrusa, das revisoras de texto (os revisores de texto são todos revisoras, como os educadores de infância são todos educadoras e as treinadoras de equipas femininas são todas treinadores), segundo a qual não se diz ter que ler, mas ter de ler, excepto quando o «que» é pronome, como aqui. O meu bem-haja por preservarem uma regra que, se não servir para mais nada, já serviu para ser aqui mencionada.] Ninguém devia ter de ler, todos deviam ter que ler. Ler não tem nada a ver com a marmelada costumeira de abrir novas oportunidades. Isso é para subir nas estatísticas sem saber ler. Ler é, sim, um vício hardcore de quarto-de banho. Ler não tem nada a ver com  adquirir perspectivas diferentes da minha, tem, sim, a ver com o Sudoku já não dar luta, enquanto as palavras cruzadas vivem o seu apogeu desde que foram inventadas por Ricardo Coração de Leão quando sitiava, chateado que nem um peru, Saladino, sem que acontecesse porra nenhuma anos a fio. Alguém está interessado em abrir nos seus horizontes uma nesga onde arrume a noção de que o palateco é um animal ornamental que passa o dia a dormir? Não, queremos simplesmente saber as letras que faltam em p _ l _ t _ c o.
Ler, em resumo, é – desculpem, estão a tocar à porta. Escolhem sempre estes momentos. Parece que adivinham.